Falar sobre a beleza é discorrer sobre padrões estéticos que são sempre culturais e mudam ao longo do tempo e conforme as sociedades. Há, portanto, uma história da beleza que, ao contrário do senso comum, não se refere, necessariamente à mulher e nem à aparência física. Ao contrário, “belo” foi, por séculos ou milênios, um qualificativo associado ao homem e aos atributos ditos masculinos, e não à mulher.
Daí entender que, uma história da beleza é, em princípio e por muito tempo, uma história masculina. As mulheres não representavam a si mesmas mas eram representadas por homens e, portanto, as imagens de mulher e da beleza feminina foram, desde a Antiguidade, construções do imaginário masculino.
O termo grego mais próximo para beleza ou belo é Kalón: significa aquilo que agrada, que suscita admiração, que atrai o olhar. Os gregos antigos, contudo, não tinham uma definição clara sobre o que é beleza. Associavam a beleza a outros valores. Para Platão, por exemplo, a beleza estava na sabedoria, para o Oráculo de Delfos, na justiça. Nem mesmo Homero, que cantou a irresistível beleza de Helena, definiu a beleza mas usou-a como justificativa para a Guerra de Troia.
A Grécia e a beleza ideal
Beleza passou a ser identificada com proporção. Nascia uma matemática das proporções do corpo humano. Mais tarde, no século I a.C., Vitrúvio, exprimiu as justas proporções corporais em frações da figura inteira: a face devia ter 1/10 do comprimento total, a cabeça, 1/8, o comprimento do tórax ¼ etc.
E o que era belo? Segundo Richard Sennet, historiador norte-americano, para os gregos antigos, a beleza não estava no corpo feminino. A beleza era qualidade do corpo masculino mais especialmente do homem rico, másculo e grego. Afinal, naquela sociedade, somente o homem tinha direito à cidadania, isto é, à vida política. E isso fazia parte da atribuição do belo.
A beleza grega exaltava o corpo masculino que era exposto nu nos ginásios. Nestes locais, os homens exercitavam-se para modelar o corpo, preparavam-se atletas para os jogos olímpicos e treinavam-se soldados. O aprendizado de gramática, poesia, retórica e filosofia – necessárias para o exercício da vida política – completavam a educação masculina e harmonizavam mente e corpo.
A mulher grega: submissa e desprezada
Já a mulher na Grécia antiga, não tinha direitos políticos e vivia confinada ao espaço da casa. Não lhe era permitida a nudez e cobria o corpo com túnica até os joelhos quando estava em casa, e até os tornozelos para sair à rua.
Conta-se que foi encomendado a Praxíteles, famoso escultor ático do séc. IV a.C. uma estátua de Afrodite e que ele criou duas versões: uma vestida e outra nua. O corpo feminino nu, uma novidade na época quando só se esculpiam homens nus, chocou os cidadãos e foi rejeitada. Desprezada e considerada de pouco valor, foi depois comprada por alguns cidadãos de Cnido e exposta em um templo ao ar livre. A Afrodite vestida não sobreviveu, e a Afrodite de Cnido chegou até nós por uma cópia romana. “Vênus de Milo”, mármore, 2,02 m de altura, séc. II a.C. Museu do Louvre, Paris, França.
Hesíodo, poeta grego do séc. VII a.C., descrevia as mulheres simplesmente como kalon kakon, “uma coisa perversa e bela”. Segundo ele, as mulheres eram perversas porque eram belas e eram belas porque eram perversas.
Ser um homem bonito era fundamental, mas ser uma mulher bonita, era sinal de problema. A célebre Helena de Tróia, por exemplo, foi citada na Iliada, (livro 3), de Homero como “uma deusa entre as mulheres”, possuidora de uma “beleza terrível” que, para os aqueus era sinal de maldição. A beleza feminina leva os homens à loucura e submete-os à mulher.
Nas artes, o corpo feminino belo era representado próximo ao padrão masculino, com poucas curvas, braços e pernas fortes, o rosto sereno ou mesmo inexpressivo. Pouco se sabe como as mulheres gregas viam-se a si mesmas e se as esculturas femininas lhes serviam de padrão de beleza a ser seguido.
Fechadas em casa, as mulheres gregas se ocupavam das rotinas domésticas e com rituais diários de embelezamento. A parte da manhã era dedicada aos cuidados com o cabelo e o corpo. Usavam loções, cosméticos e óleos perfumados. Ter a pele branca e pálida era sinal de distinção social, da mulher recolhida em casa e distante do trabalho sob o sol, como as escravas. Helena “de alvo braços” era como Homero se referia à beleza da rainha espartana.
A mulher romana: a matrona reprodutora
O mundo romano não mudou a estética centrada no masculino. A austeridade exigida pela tradição romana recomendava às mulheres usarem túnicas longas (stolas), tendo na barra uma faixa bordada. Para sair, as romanas usavam a palla, uma espécie de xale comprido que podia cobrir a cabeça. A discrição era a norma: mulheres que exagerassem na maquiagem eram vistas com adúlteras ou prostitutas.
O padrão estético grego foi mantido pelas romanas: pele branca que era ressaltada com pó de giz e fezes de crocodilo moídas passadas no rosto. As plebeias disfarçavam as sardas e manchas do sol com cinzas de caramujo. Retrato de uma romana de família rica, pintura sobre madeira, 44 x 34 cm, proveniente de Fayum, séc. II d.C., Museu Real da Escócia, Edimburgo.
Para deixar as faces rosadas e os lábios vermelhos, aplicava-se ocre vermelho, importado da Bélgica. Aquelas que não podiam pagar pelo produto, usavam amoras esmagadas ou pétalas de rosas vermelhas.
Cleópatra difundiu entre as romanas alguns hábitos de embelezamento como o banho de leite de jumenta para deixar a pele macia e lisa. Nos olhos usava-se pó de antimônio ou khôl, introduzido no império pelos egípcios. Sobrancelhas grossas e bem marcadas era moda e para isso, passava-se carvão aplicado com um pau ou uma lasca de osso.
Nem todos os romanos apreciavam rostos femininos maquiados. Ovídio, no séc. I a.C. aconselhava o uso de cosméticos desde que estes “embelezassem sem destacar”. Para os escritores cristãos, como Tertuliano, séc. III d.C., a maquiagem era um ato contra Deus pois a mulher estaria tentando “refazer a criação divina”.
As romanas ricas usavam muitas joias: anéis, braceletes, brincos, colares, diademas. No começo do império, homens e mulheres começaram a abusar das cabeleiras postiças, principalmente louras com cabelos provenientes da Germânia (Alemanha). No século I d.C., era moda os penteados femininos altos, com uma profusão de caracóis.
Mulher medieval: entre santa e pecadora
A Igreja medieval condenou a vaidade e passou a considerar como “abominável hábito pagão” o costume das termas. Foram abandonados os cuidados de higiene herdados dos gregos e romanos: os banhos e as massagens com óleos perfumados.
Qualquer preocupação estética era vista como afronta às leis divinas. A maquiagem foi condenada pois pervertia de maneira sacrílega a imagem de Deus na mulher.
A Igreja via a mulher sob dois arquétipos opostos e baseados nas Escrituras: de um lado, a Virgem Maria, representando a absoluta castidade e, de outro, a Eva pecadora. Este segundo arquétipo foi o mais presente.
A mulher, tal qual Eva, era a mãe de todo pecado, vulnerável a fraquezas e vícios e, por conseguinte, associada ao demônio. A mulher era considerada inferior ao homem e submissa a ele – uma hierarquia que, segundo a Igreja, era natural e fora estabelecida por Deus. Como lembra a historiadora Michelle Perrot:
“O catolicismo é, em princípio, clerical e macho, à imagem da sociedade de seu tempo. Somente os homens podem ter acesso ao sacerdócio e ao latim. Eles detêm o poder, o saber e o sagrado. Entretanto, deixam escapatórias para as mulheres pecadoras: a prece, o convento das virgens consagradas, a santidade.” (Perrot, 2007).
As mulheres cobriam o corpo com longas vestimentas e escondiam os cabelos em toucas justas. A beleza feminina baseava-se no estereótipo da dama virtuosa, bem-nascida, devota, de rosto angelical, lábios pequenos, mais para a Virgem Maria do que para Eva.
Mesmo assim, existiam toques de vaidade: os cabelos eram clareados com água de lixívia (cinza do boralho, colocada na água) e expostos ao sol; as sobrancelhas eram depiladas e a testa aumentada pela depilação da linha dos cabelos. As faces eram beliscadas e os lábios mordidos levemente para que ficassem rosados.
Na arte, o corpo feminino está escondido sob pesada vestimenta que não deixa perceber contornos de seios e quadris. Corpos femininos nus ou seminus só em cenas representando o inferno e sempre junto às figuras de demônios.
O Renascimento e a valorização do homem (no sentido estrito)
O Renascimento redescobriu a Antiguidade clássica que considerava como uma idade de ouro. A estética renascentista exaltou a criação de Deus em todas as suas formas, especialmente, o corpo humano que se tornou uma grande fonte de inspiração para os pintores e escultores.
Retomam-se as proporções e simetrias estabelecidas por Vitrúvio no séc. I a.C. É bonito o que corresponde a essas medidas e, diferente delas, é considerado feio.
O ideal de beleza continua sendo masculino. Belo e perfeito é o corpo do homem, descrito em todos tratados de anatomia. O Il libro dell’arte, escrito por volta de 1400 por Cennino d’Andrea Cennini (1370-1440), referência dos artistas renascentistas, descrevia as proporções ideais do corpo masculino e finalizava afirmando “as da mulher, eu não vou falar, porque não têm nenhuma medida perfeita”.
Leonardo da Vinci e Michelangelo sempre dão destaque ao homem representando-o sob vigoroso naturalismo de gestos e expressões faciais em que se destacam músculos e nervos. A ideia de inferioridade do corpo feminino era explicada por fatores religiosos: Adão fora criado à imagem e semelhante de Deus enquanto Eva, formada a partir da costela de Adão era apenas um reflexo imperfeito da criação divina, uma espécie de subproduto.
A mulher renascentista: a beleza idealizada e a desejada
A representação renascentista do corpo feminino renascentista descola-se da temática bíblica e religiosa e inspira-se nas deusas e ninfas da Antiguidade concebendo uma nudez idealizada.
A Vênus, de Botticelli (em O Nascimento de Vênus, c.1484-1486) é o arquétipo da beleza feminina inspirada na arte antiga clássica. Assemelha-se mais a uma escultura de mármore branco do que a uma mulher de carne e osso. A idealização da beleza ignora o padrão anatômico: a Vênus tem o pescoço exageradamente longo e inclinado, ombros estreitos e caídos de onde pende, estranhamente, o braço esquerdo.
A partir de meados do século XVI, os pintores de Veneza e Flandres abandonam a idealização da beleza feminina e buscam representar um corpo mais real dando-lhe plasticidade e volume. Pintam o corpo feminino para ser desejado e tocado e desejado. Corpos femininos nus ou seminus envolvidos por véus transparentes são retratados em telas a óleo e nos afrescos de palácios e igrejas. Abre-se um enorme abismo entre a Vênus de Botticelli e as mulheres carnais e cheias de curvas de Veronese, Ticiano e Rubens (veja As Três Graças).
A Igreja, isto é, papa, cardeais e bispos, já não é a única consumidora de arte: príncipes, nobres, banqueiros e comerciantes encomendam telas para decorar os aposentos íntimos dos palácios.
As imagens femininas repetem um padrão presumivelmente apreciado pelos homens (pelo menos para os compradores essas obras): pele clara, rosto oval, cabelo loiro avermelhado e longo. A maquiagem já não é mais proibida e as mulheres pintam olhos, cílios e os lábios. As cortesãs maquiam até os mamilos. No século XVII, para se obter uma aparência de porcelana passa-se na pele uma pasta chamada la blanquete feita de pó de arroz, talco e umas gotas de tintura de benjoim, que obstrui os poros.
A profusão dos nus e seminus não agrada a todos. Muitos se chocam com a sensualidade dos corpos despidos em lugares sagrados como, por exemplo, as figuras que compõe A criação do Homem, a célebre pintura de Miguelangelo para a Capela Sistina.
Em meados do século XVI, o Concílio de Trento, instituição central da Reforma Católica, ordenou o banimento de qualquer representação susceptível de despertar o desejo. As figuras nuas de Michelangelo tiveram suas “partes” cobertas.
Os protestantes foram mais radicais: mandaram retirar toda escultura e pintura dos templos. No final do século XVI surgem os atos iconoclastas no norte da Europa, especialmente na França, Países Baixos e Alemanha. Retábulos, esculturas, vitrais, telas e murais desaparecem. Quem saberia dizer quantas e quais obras foram destruídas nessa ocasião?
A Revolução Francesa e a exclusão da mulher
As ideias de liberdade e igualdade do Iluminismo contagiaram as mulheres. Elas foram às ruas e participaram das manifestações da Revolução Francesa. Eram chamadas de “bota-fogo” por incitarem os homens à ação.
As mulheres organizaram a marcha a Versalhes, em outubro de 1789. Armadas, seguiram a pé de Paris a Versalhes (cerca de 20 km) decididas a entrar no palácio e falar com o rei Luis XVI.
Aos olhos dos pensadores iluministas, contudo, a liberdade e a igualdade não dizia respeito às mulheres. Os filósofos iluministas concordavam com a exigência de John Locke, de que “a mulher deve se submeter ao marido”. A célebre Declaração de Direitos, de 1789 referia-se aos direitos do homem, do sexo masculino, e não à humanidade. Como lembra Perrot:
“No século XVIII ainda se discutia se as mulheres eram seres humanos como os homens ou se estavam mais próximas dos animais irracionais. Elas tiveram que esperar até o final do XIX para ver reconhecido seu direito à educação e muito tempo mais para ingressar nas universidades.” (Perrot, 2007).
Olympe de Gouges redigiu, em 1791, a Declaração dos Direitos da Mulher e da Cidadã exigindo o direito das mulheres à participação política. Pregava a libertação feminina contra a tirania dos homens. Afirmava que a exploração da mulher pelo homem é a origem de todas as formas de desigualdade.
As ideias de Olympe de Gouges foram rejeitadas pelo governo revolucionário e ela acabou guilhotinada em 1793. Foi decretado o fechamento das associações femininas e suprimidas as “atitudes patriotas das mulheres” por irem contra a “ordem natural”. A influência da mulher era vista como ameaçadora para a moralidade pública e ela foi afastada da vida pública e restringida ao espaço doméstico.
A mulher no séc. XIX: a esposa virtuosa
No século XIX, os papéis masculino e feminino se tornam mais rígidos. O aparecimento da sociedade industrial e do capitalismo, e a ascensão da burguesia com a Revolução Industrial contribuíram, de forma decisiva, para o encerramento da mulher no espaço privado – o doméstico, ocupada em cuidar dos filhos e do marido. O lugar da mulher é em casa. A dona de casa representa um ideal de respeitabilidade.
Aos homens caberia o espaço da produção, do mundo público, do poder e das decisões. O mundo masculino burguês, altamente competitivo, era constituído por viagens e negócios e, portanto, não era lugar adequado para um ser “frágil e sensível” como a mulher.
Essa distinção é notada no modo de vestir: os homens abandonam os trajes elaborados, os punhos de renda e perucas empoadas e adotam um vestuário sóbrio mais adequado ao mundo dos negócios. Já para as mulheres, o vestuário refletia o poder e o sucesso do marido e, ao mesmo tempo a fragilidade e delicadeza feminina e sua submissão ao homem. A mulher estava aprisionada em uma jaula de armações, amarrações, anáguas, saias, corpetes e a peça principal – o espartilho.
O espartilho, surgido por volta do séc. XVI, na Inglaterra, tornou-se peça indispensável do vestuário feminino no século XIX. Era usado tanto por burguesas ricas e aristocratas quanto por mulheres operárias. Sua função era levantar os seios, melhorar a postura e, o principal, afinar a cintura dando ao corpo feminino a forma de ampulheta ou de “X”. Um corpo partido ao meio.
A beleza feminina é ambivalente pois oscila entre dois padrões estéticos. De um lado, a burguesa virtuosa, matrona, gorda, de pele branca leitosa, com pouca ou nenhuma maquiagem, seios fartos e prole numerosa. A maternidade triunfante e o sucesso material do marido compõem o retrato do casal ideal.
De outro, a mulher doente, magra, de olhos fundos. É a beleza mórbida e melancólica cantada pelos poetas como a “flor pálida” tal como Marguerite Gautier, a Dama das Camélias ou Madame Bovary, de Flaubert. O modelo experimentou uma certa voga nos anos 1820 a 1840, no auge do romantismo.
Ambos padrões se apoiam no estereótipo de mulher frágil, passiva e dependente que vigorou até o início do século XX. Após a Primeira Guerra Mundial, os padrões de beleza e feminilidade sofreram uma profunda mudança.
Vídeo: o corpo feminino ideal, do Egito Antigo aos dias atuais
Fonte:
- ECO, Humberto. História da Beleza. Rio de Janeiro: Record, 2010.
- MOTA, Maria Dolores de Brito. De Vênus a Kate Moss: reflexões sobre o corpo, beleza e relações de gênero.
- SENNET, Richard. Carne e pedra. O corpo e a cidade na civilização ocidental. Rio de Janeiro: Record, 2001.
- SANT’ANNA, Denise B. História da Beleza no Brasil. São Paulo: Contexto, 2014
- PERROT, Michelle. Minha história das mulheres. São Paulo: Contexto, 2007.
- VIGARELLO, Georges. História da Beleza. Rio de Janeiro: Ediouro, 2006.
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Que matéria maravilhosa. Gratidão por compartilhar. É muito interessante observar as mudanças ao longo do tempo sobre o que é de fato a beleza feminina. Fiquei triste com a moça que morreu na guilhotina por lutar por igualdade de direitos. Luz p’ra nós!
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Curti muito o artigo! Vlw 🙏
Beleza está nós olhos de quem ver.
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