Matriarca – O papel da mulher [#1]

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*O conteúdo a seguir é uma transcrição (editada) da fala de Bernardo Gregório, numa entrevista gravada para o programa “Entre o céu e a terra” da TV Brasil em 2014.

 

Para falar sobre o papel da mulher, temos que começar pela origem, e dessa maneira acabamos voltando na pré-história, que infelizmente é muito pouco ensinado e muito pouco visto nas escolas. (E cá para nós, muitos dados são duvidosos também)

Quando vemos a pré-história, passa muito rápido: paleolítico, neolítico e já entramos na escrita que começa com a Suméria e o Egito. Assim, temos que imaginar que toda essa história começou numa época em que nós não éramos propriamente humanos, nós ainda tínhamos muito de animal ou cem por cento de animal e que as mulheres (que na verdade nem bem mulheres eram), na época tinham um ciclo diferente do atual que nós pensamos (que é o ciclo menstrual de vinte e oito dias), mas elas tinham o ciclo de um ano. Como é possível isso? As pessoas não param pra pensar, mas a ideia da menstruação não é natural. Nenhuma fêmea de mamífero silvestre menstrua (não incluindo o animal doméstico, porque tem interferência humana). E ela não menstrua porque toda vez que ela ovula, ela engravida. Não tem como não engravidar. Então, o que acontecia com a mulher naquela época? Ela ovulava e todas as mulheres sabem que quando elas moram juntas, elas tendem a ter o ciclo menstrual sincronizado. Na época você tinha uma sincronia mundial dos ciclos.

Naquele tempo, a ovulação acontecia na primavera. E todas eram fecundadas. Elas tinham no final da primavera nove meses de gestação e três meses de amamentação, o que dá doze. Sendo assim, elas tinham um ciclo de um ano, que eram nove de de gestação e três de amamentação; a amamentação inibe uma nova ovulação. Depois de três meses, ainda que ela continuasse amamentando, acabava tendo um escape, ovulava novamente, engravidava novamente. Não dava tempo pra menstruar. E o ciclo era esse. As mulheres, elas então, na ovulação, tinham como todas as outras fêmeas de mamíferos, o cio. O que significa cio? Uma ditadura hormonal, por causa da ovulação, dos picos hormonais que acontecem na ovulação, existe uma imperiosidade, uma obrigatoriedade de haver cópula, portanto, a fecundação em seguida. Isso acontecia mais ou menos sincronizado. Como hoje em dia você vê, por exemplo, mal comparando, cadelas costumam ter cio, que seria à cada seis meses no caso delas, sincronizado também, que acaba sendo em agosto, por exemplo, quando é falado aquele mês do cachorro louco, e é por causa disso. Então, o ciclo da mulher era de um ano.

A ideia de que os filhos eram da mulher, era uma ideia óbvia, porque os filhos vem de dentro da mulher. Parece muito claro que a mulher que gerava uma nova vida. E não era nada claro, que o homem tinha alguma participação com isso. Não existia uma relação direta, óbvia, entre o homem e os filhos. Eles imaginavam que os filhos eram da mãe e nem existia a palavra pai ou a ideia de que o homem pudesse participar desse processo de alguma forma. Era como uma situação mágica, uma situação divina, sobrenatural em si, a própria mulher era a deusa, porque ela criava uma nova vida “do nada”, ela sozinha, criava uma nova vida “do nada”. E ela amamentava. A imagem da amamentação também é divina. Aparece magicamente, digamos assim, o alimento pra manter aquele bebê. Ela cria nova vida e ela sustenta essa nova vida com os recursos dela sozinha. Nessa época, que é o finalzinho do paleolítico a mulher era vista como uma deusa, ela propriamente uma deusa encarnada. Então, a primeira ideia da deusa é a mulher de carne e osso. Ela era encarada como uma deusa.

 

Vênus de Willendorf: estatueta de pedra calcária, encontrada na Áustria, que representa uma espécie de divindade feminina (deusa mãe). Diz-se que ela foi feita no final do período Paleolítico Superior, entre 28 mil a 25 mil anos a.C.

 

Depois, aos poucos, com o advento da agricultura, é que houve a associação da deusa, a mulher-deusa, com a deusa mãe que é a deusa da terra, aí eles começaram a perceber, porque quem cuidava da agricultura eram sempre as mulheres e o homem na época tinha uma função diferente, a caça. A caça pertence ao homem, se tivesse que guerrear com a tribo vizinha, aí seria o homem que fazia isso e a mulher cuidava dos filhotes (digo filhotes porque não era bem humano), porque é natural, se ela gerou, se ela amamenta, é óbvio que ela cuida do filhote. Naquela época nós morávamos em caverna, pois ela cuida da caverna, porque é um lugar mais protegido. Naquele tempo você tem que imaginar que estávamos em plena época glacial. Portanto, sair da caverna, ir lá caçar, é muito arriscado pois você pode ser atacado por um bicho, pode morrer de frio. Assim, as mulheres deixavam isso para o homem. Ele já conhecia o fogo, no final do paleolítico. Eles tinham fogo, mas não sabiam fazer o fogo. Se tinha um incêndio, caia um raio, eles pegavam o fogo e tinham que constantemente manter esse fogo alimentado. Quem fazia isso era mulher. E tinha vários subprodutos. Como ela cuidava do fogo, nada mais lógico do que ela cuidar da comida também. E é um poder muito grande se você cuida da alimentação. Se você briga com ela, ela não te deixa comer. Quem cuida da caça? O homem caça, traz e ela prepara o alimento. Um subproduto é a pele do animal que foi caçado. Se estamos na época de frio na era glacial, essa pele é muito importante também pra agasalho e também compete à mulher. Então, mais um poder. Ela tem o poder da alimentação, do fogo, que é o calor, a luz, e mantém os animais distantes das peles, da vestimenta e o mais importante: da próxima geração, que é cuidar dos filhos. Nós até falamos mal que, quem balança o berço, governa o mundo. E isso é bem matriarcal.

 

Uma pitada de humor   

 

Elas tinham o controle completo e isso aumentou com a agricultura. Elas começavam a perceber que, na época, nós vivíamos de caça e de coleta. Coletava lá algumas algumas raízes, algumas frutas. E elas começaram a perceber que ali onde todo mundo jogava fora os caroços nasciam algumas plantas. Ela começa a associar a ideia da semente com a ideia da planta, claro, que demora milhares de anos nesse processo, até que ela descobre que se você coloca a semente na terra, a terra devolve uma planta e você pode ter essa ligação com a terra. Aí aparece a deusa da terra, então temos de terra o elemento terra, propriamente dito, a terra planeta-terra e terra-natureza.

Chamamos de grande mãe, que é essa representação da natureza. E por que feminina? Ora, porque se a mulher gera uma nova vida e essa deusa da terra também gera várias novas vidas, deve ser mulher também. A associação é lógica e você tem a grande mãe. Nessa altura, no neolítico já tínhamos a agricultura mais estabelecida, já não se morava mais na caverna, mas já se tem uma aldeia redonda, circular, aí a ideia do círculo aparece desde o aparecimento do fogo. Por quê? Porque se você tem uma fogueira no centro, é natural que você se coloque em círculo em torno do fogo, pra todo mundo receber a mesma luz e o mesmo calor. Como eles estavam acostumados a fazer isso na caverna, na hora que você vai construir a sua aldeia, você faz uma fogueira no centro da aldeia, como os índios brasileiros ainda fazem e constroem a choupana, as ocas enfim em torno, num círculo. Então, a forma dessa grande mãe é circular – geometricamente e no tempo também. Porque o ano é cíclico. O ano da mulher, o ciclo de gestação e amamentação e o ano da terra.

 

A mulher sempre esteve relacionada com o círculo, ela é o circular, o abstrato, a sensação;
enquanto o homem é a reta, a lógica. 

 

A partir daí, elas começam a perceber as quatro estações do ano. Portanto, você tem a primavera, que é a época do nascimento dos filhotes, e no fim da primavera ou, começo do verão, o novo cio, que no neolítico já deixa de ser cio, mas passa a ser um ritual de fecundidade. Você tem o período do verão, que é quando brotam os campos plantados, então, são os campos verdes. E no final do verão, no começo do outono, os campos dourados, que é quando você já tem o amadurecimento, por exemplo, do trigo. Nessa época, quais eram os vegetais que nós cultivávamos? Eram trigo, aveia, cevada, pouco mais do que isso, essa era a base da agricultura. E algumas frutas também. O outono era uma época muito importante, porque era o que tinha o maior trabalho durante o ano. Você tinha que colher, ceifar o trigo, separar o trigo bom, do ruim e separar, principalmente as sementes que seriam replantadas, diríamos replantadas do ponto de vista matriarcal, ela seriam sacrificadas, porque você vai deixar de se alimentar daquela semente e vai a bem da verdade jogar elas fora. Você vai jogar por terra, vai enterrar a semente como se você entregasse pra deusa. Todas as ofertas da deusa, mesmo posteriormente, sempre se fazem pra baixo. Você faz uma oferta para a terra, num buraco cavado na terra. Quando você faz uma oferenda para um Deus masculino, é num altar, é pra cima. Então, você faz para o céu, em direção ao céu, quando é masculino e em direção à terra, quando é feminino. Em grego, esse lugar pra baixo, chama-se cratera. É oferecido para terra, numa cratera, num buraco. E a ideia de plantar é exatamente isso, você coloca a semente lá, pra baixo, e ela é tragada pela terra. Assim, você faz o sacrifício da semente. Qual semente? Obrigatoriamente, a melhor semente. Se você plantar uma semente que tá meio torta, meio pequenininha, no outro ano, você vai ter uma péssima colheita. Obrigatoriamente você tem que plantar o melhor grão. Com isso, veio a ideia de que a deusa exige o sacrifício do melhor grão. Isso tudo em relação à agricultura. Só que a deusa se doa também pra o clã, pra tribo, porque ela se deixa ceifar. Na época da colheita, você pega o trigo e ceifa com a foice e isso denota que a deusa se dá em sacrifício. A ideia de que em retribuição, você deve fazer o clã fazer um sacrifício de volta para a deusa. Quem vamos sacrificar? O melhor grão. Mulher, não. A mulher não pode ser sacrificada porque a mulher é sagrada. Então, vai ser um homem, mas o melhor possível. O que é o melhor possível? Aí, varia de civilização pra civilização. Os Maias e os Astecas, eles chegavam a fazer competições esportivas pra escolher o melhor cara que ia ser sacrificado. Ganhava a competição, ia pro sacrifício. Para nós, parece estranho, mas pra eles era uma honra grande. Naquela época, a escolha era da própria matriarca. Essa sacerdotisa da deusa, é a matriarca e ela optava. E era comum que ela escolhesse para o sacrifício um filho, porque nada melhor do que o filho dela, pra ser considerado o melhor indivíduo, que era sacrificado no final do outono, provavelmente com a mesma foice que tinha sido feita a colheita. Neste dia especial (do qual nós temos reflexos disso, por exemplo, no Halloween, no final do outono, sempre tomando hemisfério norte como referência, porque todas as religiões acabam vindo do hemisfério norte), a matriarca esperava quando a lua aparecia no céu em forma de foice vermelha, isso se chama a foice da Lua Negra, que é o último dia antes da noite de Lua Negra e que ela aparece logo após o pôr do sol e como está muito perto do pôr do sol, ela é tingida de vermelho. Então, forma uma foice, sangrenta no céu: é o sinal da deusa de que ela aceita o sacrifício naquela noite.

 

 

Digamos que é uma noite meio macabra , mas faz parte do ciclo e não era visto como uma perda. A ideia é que exatamente como o trigo, aquele que é sacrificado no final do outono, vai renascer na primavera, junto com as sementes. As sementes plantadas renascem na primavera. De modo que, a ideia do círculo e do ciclo do tempo está sempre constante na visão matriarcal. Elas não entendiam o tempo linearmente, como nós: presente, passado, futuro. Elas entendiam o ano, sempre o mesmo ano, o ano que se repetia nas suas quatro estações. O mês, que é a lua, é um ciclo completo da Lua, das quatro fases. Que aí sim, dão uns vinte e oito dias que nós privilegiamos hoje; nós dividimos uma lua, que seria um mês em quatro semanas, uma fase da lua pra uma semana mais ou menos. Todos esses tempos são cíclicos. E essa que é a visão matriarcal.

 

 

Continua na parte [#2] – O Surgimento da bruxa” 

Vídeo da entrevista:
Entre o Céu e a Terra – Entrevista Bernardo de Gregório

 

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