Dionísio, Sátiros e Ninfas – Ritos e Rituais [#3]

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*O conteúdo a seguir é uma transcrição (editada) da fala de Bernardo Gregório, numa entrevista gravada para o programa “Entre o céu e a terra” da TV Brasil em 2014

 

Para melhor aproveitamento e entendimento, sigam a sequência dos posts: [#1]  [#2]

Neste terceiro episódio os temas tratados são sobre: mitos, ritos, doutrinas, religiões, Dionísio, sátiros, ninfas, surgimento do teatro nas suas versões tragédia e comédia e muito mais.

 

Primeiramente vamos entender qual é a função do ritual, o que é um rito. Toda e qualquer religião precisa obrigatoriamente se apoiar num tripé: no mito, no rito e numa doutrina. E as três coisas, uma existe em função da outra, são inseparáveis em qualquer religião. Você tem sempre um mito que vai explicar, vai ter que dar conta de alguma forma das perguntas mais comuns que o ser humano se faz e a maior parte das religiões pretende responder, que é: De onde viemos? Que lugar é esse aqui que estamos? Pra onde nós vamos? Esse “aonde nós vamos” pode incluir depois da morte. O que é isso aqui? E dentro do “o que é isso aqui?”: Por que chove? Por que os bebês nascem? Por que existem doenças? Por que as pessoas sofrem? – Enfim… Obs.: Lembrando que nós aqui do Círculo EDL já temos essas perguntas respondidas pelo nosso mestre Bob Navarro.  

A mitologia é uma forma primitiva e antiga de responder essas perguntas. Hoje em dia nós procuramos a ciência como ferramenta para responder as mesmas perguntas. A ciência não responde, mas ela se esforça (risos).  A mitologia responde e responde de uma forma mágica, não de uma forma lógica. E antigamente essa forma mitológica era suficiente para as pessoas. Hoje em dia algumas pessoas optam pela forma mitológica, algumas pessoas pela forma filosófica (que é racional) e algumas pessoas precisam de comprovação científica. Nós temos essas três visões, mas antigamente, a mitológica era suficiente. Por exemplo, você tinha um trovão e ninguém sabia o que era aquele som, deviam pensar: “Que coisa mais aterrorizadora!” Aristóteles dizia que o homem pensa porque se aterroriza, porque se espanta. Então, você se espanta com trovão e queremos saber o que é isso. Aí, vem a explicação: “Olha existe um Deus que tem um martelo e ele bate com o martelo nas nuvens. E esse é o som do martelo de Thor, é claro, é nas nuvens” -É uma explicação. Aí você fica mais tranquilo. Esse barulho só significa que Thor está lá martelando as nuvens. E todas as religiões tem um mito relativo. Inclusive nas religiões atuais, as pessoas não costumam se referir à mitologia, mas é mitologia. Nós falamos em mitologia cristã, falamos em mitologia judaica, qualquer tipo de religião tem sempre uma historinha e essa historinha se chama mito. A diferença entre uma lenda e um mito é justamente o caráter sagrado que o mito tem. Uma lenda é uma história que se repete em determinado lugar, de um determinado povo; um mito, ele é universal, se pretende universal e sagrado. À partir do momento que esse mito é contado e recontado numa mesma religião ao longo de gerações, você tem que ter alguma coisa que “atualize” esse mito, que o torne ato. “Atualize” no sentido de transformar em ação. Quando você transforma o mito em ação, você está fazendo um rito. O ritual é um conjunto de ritos de uma religião. De modo que, por exemplo, se eu conto pra você que Jesus reuniu os seus apóstolos numa última ceia em que ele repartiu o pão e o vinho, isso é um mito. Se eu vou transformar isso em ritual, eu tenho a missa em que o padre vai lá e reparte o pão e o vinho. Na igreja anglicana eles ainda repartem o vinho, na igreja católica, eles só repartem o pão. Mas é uma repetição daquele ato, você torna presente uma história que é abstrata. Portanto, a grande vantagem do ritual é essa presentificação, essa sensação de pertencimento, você participa do ritual e você repete aquele mito, você vivencia aquele mito. Então, a grande importância é a vivência.

 

A Santa Ceia

 

E na parte da doutrina, dentro do mito e do rito, você depreende determinadas coisas que são positivas ou negativas que devem ser feitas, ou que devem ser evitadas. Isso muda radicalmente de religião pra religião, mas todas elas sempre aconselham: “Olha, vá por aqui, não por ali”. “Prefira fazer isso e não aquilo outro”. Isso é a doutrina. Quando você junta as três coisas, você tem uma religião propriamente dita. Sendo assim, rituais, mitos e doutrinas sempre existiram. Parece que faz parte da alma humana a necessidade de uma religião com esses três pontos. Sempre nós vamos precisar de uma explicação. E essas explicações, elas mudam radicalmente. Inclusive, do ponto de vista de moral, de doutrina, tem um estudo que foi feito por Marie Louise Von-Franz sobre o que é o mal. Ela queria descobrir se existia um mal arquetípico, alguma coisa que todo mundo, em todos os lugares, considerava como o mal. O máximo que ela conseguiu espremendo histórias, mitos e contos antigos, foi a ideia de que catástrofes naturais são vistas como o mal por todo o mundo. Dificilmente alguém vai ver como bem um furacão, um maremoto, e doenças. Inclusive em várias línguas nós usamos “mal” como sinônimo de doença: Mal de Alzheimer, mal de Parkinson etc., e é só com isso que as pessoas concordam. Doenças e catástrofes são ruins. O resto, você encontra numa religião dizendo “isto é ruim” e numa outra religião, o exato contrário, dizendo que o mesmo isso é a melhor coisa possível. Ou seja, não chegam em nenhum acordo. Então, a ideia de mal é arquetípica; o que é esse mal varia muito. Você vai ver em mitos do mundo inteiro variações enormes em relação à moral vigente. Vai ter mitos que falam “A” e outros que falam o exato contrário. Na Grécia antiga, exatamente como hoje em dia, você tinha várias religiões. As pessoas acham que é uma religião só quando se fala em mitologia grega, que é uma coisa só. Não, não é! Exatamente se no futuro alguém vier a estudar o nosso tempo aqui você vai ter várias religiões cristãs que variam desde o espiritismo aos evangélicos, passando pelos católicos, com várias outras coisas, por exemplo a umbanda que mistura o cristianismo com a raiz africana, e ao mesmo tempo, outras religiões que não tem nada a ver com o cristianismo. Você vai ter islâmicos e judaicos e religiões xamânicas, tudo no mesmo lugar, na mesma época. Na Grécia Antiga não era diferente, você tinha várias religiões que “conviviam”. A religião oficial era a religião apolínea, na maior parte do tempo; depois no período helênico e clássico que era patriarcal e era baseado no oráculo de Delfos e no Deus Apolo (por isso apolíneo). Mas existiam outros, existiam religiões matriarcais e existiam religiões, inclusive reencarnacionistas na época que eram as religiões órfícas que trabalhavam com a ideia da reencarnação. E existia uma religião bem especial, diferente de todas as outras que eram os rituais báquicos ou a religião de Dionísio.

 

François Girardon – Apolo e as Ninfas

 

Dionísio se encontrava em um ambiente politeísta. No politeísmo não existe tanta rivalidade entre uma religião e outra porque os deuses se aturam. Quando você tem religiões monoteístas, os deuses não se aturam, ele tem que ser o único, então fica brigando com os outros. Como estamos num ambiente politeísta é tranquilo que exista a religião desse deus, daquele deus, diria “mais ou menos convivendo”. E Dionísio é um deus do panteão grego e é um deus do contra, na verdade. Dionísio nasce com uma dificuldade enorme, diz o mito, porque Hera tinha perseguido ele, enfim, uma longa história; mas ele nasce meio contra, meio revoltado, “si hay gobierno, soy contra!” (risos) – é bem Dionísio. Sendo assim, se todos os deuses moram no Olimpo, ele não queria morar no Olimpo, principalmente porque houve lá esse problema com a deusa Hera, e a Deusa Hera é a senhora do Olimpo. Ele não ia querer morar lá, justamente com ela que não gostava dele e ele vai morar na floresta. Todos os deuses querem que sejam construídos templos pra eles. Bom, se todos os deuses querem isso, Dionísio não vai querer. Ele vai querer outra coisa diferente. Ele vai morar na floresta, e morando na floresta, ele encontra com seres da floresta que habitam naquela região, que são os sátiros e as ninfas. Sátiro é aquele ser meio bode, meio humano e tem chifrinhos e toca flauta. Eles são seres ligados à natureza. Portanto, tem uma origem matriarcal antiga.

 

 

As ninfas também, elas são ligadas à fontes de água e também diretamente à forças da natureza, também matriarcais.

 

 

Dionísio se insere nesse ambiente matriarcal antigo, a floresta, sátiros e ninfas. E diz o mito que eles se alegram bastante com a chegada de um deus que resolve morar lá com eles, e eles colhem algumas frutas que na época era a época da colheita da uva e fazem um suco de uva pra fazer uma festa pra comemorar da presença de Dionísio. Dionísio gosta muito de celebrar a vida, ele é o Deus que celebra a vida como ela é. Por quê? Por causa dessa dificuldade no nascimento, essa perseguição, ele valoriza a vida. E assim, ele festeja com os sátiros e as ninfas. Diz o mito que esse festejo durou tanto tempo que aquele suco de uva  fermentou, e aí, virou vinho. Aí a festa ficou mais legal. Dionísio é então a celebração da vida e ele é o único deus grego que é transcendente e ele transcende através do vinho. O vinho, ele transforma a maneira de “funcionar normal” e aí você fica fora de si. Em grego, estar fora de si, se diz “ékstasi”, é o êxtase espiritual. “Ékstasi” é tanto estar fora de si, quanto dar início a um movimento. Em êxtase, você inicia o movimento de transformação e de deixar de ser você mesmo. Dionísio, por causa do êxtase, ele é o deus da superação, da transcendência no sentido de que você não é mais apenas mortal, humano; mas você pode descobrir a sua porção divina. Isso é revelado somente por Dionísio.

 

 

E como eram esses rituais? Esses rituais eram orgiásticos, extremamente mal visto pelos patriarcas de plantão, é claro. Uma orgia que era dança, a dança é típica de Dionísio. Música com flauta e com percussão. Uma dança ritualística, orgiástica e extática (de êxtase). E nessa dança eles eram tomados por um transe e eles tinham rituais de dilacerar animais, devorar a carne crua e sangue e também muita atividade sexual. Você tinha um resgate, um contato direto com essa porção animal. Daí a imagem do sátiro que é meio bode, meio gente, que mora na floresta. Esses rituais eram feitos na floresta. Havia dilaceramento, destroçamento de animais, sangue, carne crua, sexo, música e dança. Isso era a origem do ritual Dionisíaco. É alguma coisa muito pouco civilizada. Era feito na floresta porque não era aceito na cidade. É alguma coisa animal, você dá uma vazão à esse lado animal. E esses rituais eram andantes, caminhantes, eles iam de cidade em cidade. Eles iam andando pela estrada e eles chegavam numa determinada cidade e se instalavam naquela cidade; e você tinha um período de orgia e eles saíam de lá e iam pra outra cidade. Esse tipo de ritual andante, caminhante, chamavam os “ditirambos”.

A origem do ritual Dionisíaco eram esses ditirambos, andarilhos. É a ideia do louco. O louco andante que toda a cidade do interior tem lá o fulano que vai andando de cidade em cidade totalmente louco que é a carta do tarô “O louco”. Dionísio é esse louco. Dionísio é também então o Deus da loucura, não loucura patológica, mas a loucura divina, a loucura do êxtase, da revelação do espírito e da superação do indivíduo. Com o tempo não tinha como uma cidade civilizada e patriarcal aceitar muito tranquilamente um ritual dessa natureza. Aos poucos esse ritual foi sendo arrumado, pasteurizado, pra que conseguisse se encaixar numa visão civilizada (que para os gregos é fundamental que exista). A ideia da “pólis”, do aparecimento da pólis, da cidade, da civilização. O que eles começaram a fazer? Pensaram: “Vamos por um pouco de ordem nisso, a gente vai estabelecer um local aonde esse tipo de ritual pode se dar, não lá na floresta, mas vamos trazê-lo pra dentro da cidade, mas num lugar específico”. E esse lugar específico, um templo de Dionísio, que funcionava de uma forma muito diferente, ele era aberto e era chamado o que nós chamamos hoje em dia de teatro.

 

O Louco

 

Os demais deuses tinham templos, Dionísio tinha teatro. Na verdade, anfiteatro. “Amphitheatrum”, é o nome deste lugar onde vai ser recebido o rito Dionisíaco dentro da pólis de uma forma mais organizada. Amphi porque é duplo. Por que é duplo? Dentro dessa organização os ritos eram celebrados. De manhã, a sátira e à tarde a tragédia. Sátira, vem do termo sátiro, ou seja, é aquilo que é em honra aos sátiros. O que chamamos em latim ou em português de “comédia”. O que era ensinado? A arte de rir da própria desgraça. Assim, se acontece alguma coisa, você não chora, você não fica desesperado, você faz piada. Essa é a primeira lição de Dionísio: isso é comédia e isso é a sátira. Isso era representado de manhã. Já a tarde eram representadas as tragédias que são bem mais profundas. A tragédia celebra a vida no que a vida tem de mais importante, que é o seu aspecto trágico. É uma celebração da tragicidade da vida. É um mecanismo de catarse, em que você vai colocar lá o máximo do sofrimento humano e celebrar isso, aceitar também isso: essa é ideia da tragédia. E vem do grego, “tragodía”, tragos quer dizer bode, tragodía é o ritual do bode. Originalmente, nessa altura, eles pegavam o bode, porque é um animal sagrado de Dionísio e sacrificavam o bode como forma de expiar os seus pecados. É o famoso bode expiatório, que era sacrificado pra Dionísio. Num segundo momento, essa ideia de um ritual de sacrifício com sangue e morte era bem pesado do ponto de vista grego. Então eles substituíram, eles apenas expulsavam o bode da cidade, não precisava matar o bode, mas o bode carregava pra fora da cidade todos os pecados da cidade. Num terceiro momento, nem mais o bode existia, mas era uma história em que tinha uma personagem que é o protagonista que significa o primeiro que morre ou o primeiro ator, mas o primeiro que morre. E esse protagonista, essa personagem era o próprio bode encarnado. É muito comum que numa tragédia, o protagonista morra e ao morrer, ele está justamente realizando a tragédia e sendo ele o bode expiatório. Porém, diferente do animal, de uma forma consciente. Ele se dá em sacrifício. Retoma também uma ideia matriarcal antiga. À tarde eram feitas as tragédias. E é interessante porque a forma como os teatros gregos eram construídos, o palco recebia a luz do crepúsculo, do pôr do sol. Você tinha uma iluminação natural em tons avermelhados, que combinava muito com a ideia da tragédia. Tinha um entardecer e no final da tarde, com aquela luz bem avermelhada, um gancho trágico em que morria alguém e tal. Dificilmente numa peça grega, a morte se dá no palco. Eles consideravam essas cenas agressivas e fortes e não próprias pra serem vistas. Alguém contava: “Olha, a rainha se enforcou!” (no caso de Fedra); alguém falava: “Olha, o rei arrancou os próprios olhos com o fecho da roupa!”(no caso de Édipo). Isso não era mostrado, isso ficava fora da cena ou seja, eram coisas obscenas. Obscena significa que não deve ser mostrado, que fica fora da cena. Já os romanos, bem ao contrário, eles gostavam de mostrar isso com bastante sangue. Como eles não tinham muito efeito especial na época, eles usavam sangue mesmo (logo, era muito perigoso ser ator em Roma, não era bom). Então, à tarde eram feitas as tragédias.

E de noite? De noite vinha a terceira parte que era inevitável, que era orgia, a festa. À noite era de novo celebrado com vinho e com bastante atividades sexuais (a ideia da orgia). Você tinha sátira, tragédia, e orgia. Desses rituais de Dionisíacos, é claro, já deu pra perceber, veio a nossa ideia do teatro: tanto a ideia da comédia, quanto a ideia da tragédia, aquelas duas máscaras que são símbolos do teatro porque no teatro grego eles faziam com o uso de máscaras. Para que você entendesse que era uma personagem e não a pessoa do ator, eles vestiam uma máscara: a máscara trágica e a máscara cômica. E também desse mesmo ritual, aqui no Brasil, é fácil de localizar o carnaval. O carnaval veio dos ritos báquicos, que são os mesmos rituais Dionisíacos em Roma e mantemos até hoje. A ideia da orgia, essa é óbvia no carnaval brasileiro, mas também a ideia teatral. Por exemplo, se você pensa na ideia da escola de samba, a escola de samba não deixa de ser um ditirambo em que eles vêm com seus estandartes andando e contando uma história; uma história satírica, uma história trágica. É exatamente isso a ideia da fantasia de carnaval. Teatro e carnaval são os resquícios disso hoje.

 

 

E do ponto de vista religioso? Sob a perspectiva religiosa, o vinho continua sendo, é claro, uma substância sagrada. Por exemplo, do ponto de vista católico a ideia do vinho como o representante do espírito. É o mesmo vinho de Dionísio que faz essa transcendência e representa o espírito como o sangue de Cristo. Esse sangue de Cristo é a encarnação do espírito. Ora, e o outro lado? O outro lado é o corpo de Cristo. Você tem o espírito como representação do pai/céu pois todo Deus masculino é celeste. Portanto, o “Pai nosso que estais no céu”, ele desce em forma de sangue e ele encontra com o corpo, matéria, que vem do latim “mater”- mãe (que vem da terra). Bom, e o que é que vem da terra? O trigo, e do trigo se faz o pão. Dessa forma você tem de novo o vinho (o espírito) e o pão (o corpo). E é o que é celebrado na vida, na missa, vem lá de Deméter e de Dionísio – a ideia do sangue.

 

Continua na parte [#4] que ainda será publicada

Vídeo da entrevista:
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