As lendas da Amazônia na compreensão de mundo das crianças

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Era uma vez uma aldeia indígena no interior do Pará, localizada em uma cidade chamada Santarém, onde nasceu Mani, uma menina com a pele branca, como um raio de lua, bem diferente do seu povo. Ao completar um ano de vida, morreu misteriosamente e foi enterrada dentro da oca em que vivia. Sua mãe chorava tanto que as lágrimas molhavam o chão onde Mani estava enterrada. Foi exatamente nesse lugar que, um dia, nasceu uma planta, com uma raiz branquinha, como a cor de Mani. Eles então perceberam que a menina indígena havia renascido, mas com o corpo desta raiz. Por isso, a planta ganhou o nome de “Manioca” que, em Tupi, significa “casa de Mani”, percebendo que a terra estava ficando rachada, cavou na esperança de que pudesse desenterrar sua filha com vida, no entanto, encontrou uma raiz, a mandioca, que recebeu esse nome em decorrência da junção do nome de Mani e da palavra oca.

O imaginário amazônico pode transmitir às crianças lições de vida, contribuir com a valorização da história local e fortalecer o pertencimento às nossas raízes brasileiras.

Do interior, seguimos à capital Belém, onde Ana Paula Roman conta a lenda da mandioca para os filhos Arthur, 5 e Joana, 3. Desde criança, Ana Paula guarda os livros que sua mãe lia para ela e, que hoje, são lidos para os seus filhos. “Eles fazem questão de lermos juntos, no mínimo, um livro todas as noites. Para uma pessoa que sempre teve o hábito da leitura, é maravilhoso ver essa paixão neles também.”

Mulher sentada em uma cama, com duas crianças, lendo um livro

Ana Paula com os filhos Joana e Arthur: o hábito de ler e de contar histórias amazônicas transmitido de geração para geração

Ana Paula, que é bióloga, já trabalhou em terras indígenas com os povos originários da região amazônica. Mais do que uma experiência de leitura em família, levar para os filhos histórias regionais contadas pelos indígenas assume um significado ainda maior.

“Eu acho extremamente importante que eles entendam que a nossa cultura é riquíssima e que essas etnias são aquelas que, de fato, sempre viveram aqui”

Muitas das histórias que crianças como Arthur e Joana conhecem estão nos livros, mas também chegam por uma tradição importante: a oralidade dos povos indígenas e demais populações tradicionais. As histórias ancestrais transmitidas de geração a geração revelam um rico saber cultural e uma forma própria de dar sentido à vida.

Diferente das histórias contadas no cinema e na TV que, muitas vezes, não representam personagens e cenários do cotidiano das crianças amazônicas, a oralidade manifesta o imaginário de um mundo povoado por seres encantados que dialogam com a realidade local. É o caso da lenda da mandioca, que mostra a origem da raiz da qual se tira a farinha, a goma e a tapioca, tão presentes na nossa alimentação.

O pesquisador e poeta João de Jesus Paes Loureiro explica a relação entre as lendas amazônicas com a história, a cultura e a paisagem da região.

“As lendas são a história cultural do imaginário do povo ribeirinho e, ao migrarem à cidade, misturam-se a outros imaginários. Esse imaginário é um fato social determinante e distintivo na Amazônia”

Ao ouvir mitos e lendas, podemos atribuir a estas narrativas algo de ingênuo e irracional. Mas, segundo a perspectiva de Paes Loureiro, abordada em seu livro “Obras Reunidas (Volume 4)”, essas histórias revelam uma beleza poética e estética que ultrapassam a realidade imediata e fazem surgir novos significados para a compreensão da vida e do mundo.

Seres encantados como a Iara, o Curupira, a Matinta Perêra, o Mapinguari, a Cobra Grande e a nossa já conhecida Mani trazem ensinamentos para diferentes gerações, como a importância de preservar o meio ambiente e respeitar os rios e os seres da floresta. Embora sejam histórias para todas as faixas etárias, sem dúvida as crianças são mais abertas a acolher o que essas lendas têm para ensinar.

Para a psicóloga Ceyla Brilhante, é com a capacidade de imaginar que a criança dá sentido para o que sente. “A criança constrói um mundo interno com referências – conscientes e inconscientes – para lidar com as situações da vida. Quanto maior uma situação de aflição e angústia, maior a necessidade de um repertório emocional”, explica.

“A partir dessas histórias, podemos criar e construir novos sentidos. Tudo isso vem da capacidade de imaginar”

Ceyla também destaca a importância das histórias para criar o senso de pertencimento e cidadania. “A criança pode contornar momentos difíceis com personagens do imaginário coletivo da região, que apresentam paisagens e situações já conhecidas. Quando percebemos alguma situação da nossa vida num conto, não ficamos sem palavras. As palavras nos ajudam a sentir, pensar e construir caminhos.”

A pequena Alice, de 8 anos, conhecedora de quase todos os contos da Amazônia, elege a lenda do guaraná a sua preferida. “Porque o olho do menino fica dentro do guaraná, que tem o interior branco e sua semente é negra como a noite, parecendo um olho!”

A Lenda do Guaraná

Diz o folclore amazônico que um casal de indígenas da tribo Sateré-Mawé queria muito ter um filho. Por isso pediram e Tupã lhes deu Aguiry, um menino saudável, lindo e bondoso. Entretanto, sua bondade e generosidade causaram inveja a Jurupari, uma divindade do mal. Ele, então, tornou-se uma cobra venenosa e picou Aguiry. Tupã mandou trovões ensurdecedores alertando os pais do perigo que o filho corria, mas não houve tempo até que a serpente matasse o menino com o seu veneno. Assim, Tupã pediu que plantassem os olhos da criança, pois deles nasceria uma planta com frutos parecidos com os olhos do jovem indígena.

Em casa, Alice tem vários estímulos para conhecer essas narrativas. Sua mãe, a atriz e contadora de histórias Ester Sá traz em seu repertório a valorização da cultura regional e do imaginário amazônico. Ela reconhece que os mitos amazônicos têm profunda ligação com a natureza e fala da importância dessas histórias para as crianças. “A criança guarda as histórias no seu imaginário, podendo acessá-las, em algum momento da vida, para a compreensão de si e do lugar onde mora”, defende.

“Os mitos trazem sabedoria. Contá-los é uma forma de manter acesa essa memória dentro de nós e o sentimento de pertencimento à Amazônia”

Um sentimento que, ao entrar em contato com a contação de histórias, ganha o caráter lúdico. “Quando eu conto, por exemplo, a lenda da criação da noite, eu peço que as crianças imaginem o lugar onde se passa a história com rios, mata, animais e floresta, como era no passado. Seus olhos brilham com a visualização do cenário ancestral”, relata Ester.

No vídeo abaixo, Ester Sá conta a história do Boi Bumbá, com a participação da sua filha, Alice.

 

O imaginário e as lendas amazônicas trazem valorização da ancestralidade indígena, da nossa língua e culinária, assim como o conhecimento da história do Brasil e da Amazônia, muitas vezes apagada dos registros oficiais. Todos esses saberes, presentes no simples ato de contar lendas para as crianças, são um convite para que esta prática possa se perpetuar e também fazer parte das experiências de múltiplas infâncias brasileiras.

Fonte

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