Entre os séculos 13 e 17, as mulheres realizavam lendários duelos

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Tudo começou na secular cidade de Nápoles, atual Itália, então sob domínio do Império Espanhol, um triângulo amoroso estava prestes a entrar para a história. O ano era 1552 e, oriundas da nata da sociedade napolitana, duas belas jovens, Isabella de Carazi e Diambra de Petinella, descobriram que amavam o mesmo homem, Fabio de Zeresola.

Decididas a não abrir mão do rapaz, elegeram o duelo de espadas para resolver a disputa. As duas mulheres partiram para uma luta sangrenta.

Sequer trocaram as finas túnicas coloridas e as delicadas sandálias de couro. Na presença de ninguém menos do que o vice-rei espanhol, Marqués del Vasto, empunharam suas rapieiras de cerca de 1,25 quilo e pouco mais de 1 metro de comprimento e começaram as estocadas. Não houve trégua nem piedade.

Com ferimentos em ambos os lados, o duelo só terminou com a morte de uma delas —Isabella. O evento foi tão comentado na corte que inspirou o pintor valenciano José de Ribera, mais conhecido como El Españoleto (O Espanholzinho), a pintar o quadro ‘Duelo de Mulheres’, imortalizando a cena.

Diambra e Isabella eram crias da idade de ouro dos duelos. Apesar de oficialmente ilegais, foram práticas cotidianas entre os séculos 13 e 17 nas classes mais abastadas de países como França, Inglaterra, Alemanha, Espanha e Rússia. E, ao contrário do que se possa imaginar ao ver representações de damas com vestidos rebuscados e mãos suavemente pousadas no colo em pose de contemplação, os duelos femininos estavam presentes em toda a Europa.

“Para entender os duelos é preciso conhecer a história da espada”, diz o professor Wolfgang Henzler, especialista em armas medievais da Universidade de Freiburg, na Alemanha. “Quando surgiu na Era do Bronze, por volta de 3000 a.C., a espada era pesada e usada com as duas mãos. Durante o Império Romano, os gladiadores já utilizavam a versão para uma mão só, evoluindo até a chegada do fino e longo florete italiano e da rapieira, a arma predileta dos duelistas da Renascença por sua capacidade de corte e perfuração.”

Lei Magna

A forte conexão da espada como símbolo de justiça, honra e poder levou ao surgimento de torneios em 1135 na Inglaterra. E as mulheres não ficaram de fora dessa moda.

Mesmo escondidas, elas aprendiam e participavam das competições. Há relatos, datados de 1348, do aparecimento de grupos com até 50 mulheres britânicas, todas vestidas como homens, que não só competiam como não raro ganhavam.

“Adquirir uma espada exigia uma situação financeira bem abastada, algo impensável para alguém do povo ou até para o soldado comum. Daí enraizou-se a idéia de que a esgrima é um esporte de esnobes. Os duelos mostravam o status social de quem os praticava”, diz Christina Baulch, autora da tese ‘Women, Gender and Fencing’ (Mulheres, Questões de Gênero e Esgrima), de 2005, pelo Programa de Estudos Femininos da Vanderbilt University, nos Estados Unidos.

Aliás, a espada era algo tão precioso que tinha suas próprias etiquetas. Por exemplo: não podia ser desembainhada à toa e sua lâmina nunca poderia tocar o chão. Como só os nobres e cavaleiros a empunhavam, sua imagem associou-se a uma série de qualidades místicas, que acabavam por refletir o valor de um homem de acordo com o código europeu de honra. O efeito moral era tamanho que poucos júris, em especial os ingleses e franceses, condenavam duelistas, apesar do veto à prática em ambos os países.

A possibilidade de perdão extra-oficial, no entanto, não era suficiente para fazer as esgrimistas assumirem a identidade feminina em duelos e competições.

Exímias duelistas laçavam mão dos disfarces para poderem lutar. Viúva e jovem, a dama inglesa Mary Bingham, por exemplo, viu-se obrigada a defender sua propriedade e honra da cobiça de um tenente britânico no século 17. Vendo seus pedidos ignorados, travestiu-se de homem e desafiou o incauto militar para um duelo, fingindo ser o pai da senhorita ameaçada.

No dia e hora combinados, além de vencer o oponente, desarmou o jovem inglês, revelando sua identidade.

“As espadas da Renascença não eram pesadíssimas como se imagina. Essa idéia de que pesavam 8 quilos, 10 quilos, 20 quilos é totalmente equivocada. No famoso Wallace Collection Museum, em Londres, que possui espadas originais de diversos períodos, não há nenhuma que pese mais de 3 quilos. Nos duelos, seguramente o peso máximo não ultrapassava a 2 quilos”, diz John Clements, diretor da Arma (sigla em inglês para Associação de Artes Marciais da Renascença).

“Sabemos que entre 1589 e 1610, apenas na França, a capital dos duelos, mais de 10 mil pessoas morreram desta forma. Considerando que nos duelos femininos oito de cada dez terminavam em morte, enquanto que nos masculinos esta média caía para quatro, não é irreal afirmar que entre 200 e 500 dessas baixas eram de mulheres”, diz Suzanne Cherrin, professora da Universidade de Delaware, nos Estados Unidos, e especialista em Estudos Femininos.

“Os duelos femininos eram conhecidos por serem bem mais cruéis e impiedosos do que os masculinos. Nas lutas de espadas, elas costumavam untar as pontas das lâminas com substâncias que faziam cortes mais profundos e que infeccionavam na hora”, diz Cherrin. Não era só isso: as oponentes miravam os pontos que deixavam as piores deformidades.

Catarina, a escrimista

Como acontecia com todas as modas européias, os duelos femininos também chegaram à Rússia, só que de uma forma inusitada.

Aos 15 anos, a princesa alemã Sophia Augusta Frederika Von Anhalt-Zerbst foi desafiada para um duelo de espadas por sua prima, Anna Ludwig Anhalt, da mesma idade. O motivo da briga perdeu-se no tempo, mas uma coisa é certa: se o duelo entre as adolescentes tivesse tido um final trágico, o mundo não viria a conhecer Sophia pelo nome que a imortalizou: Catarina, a Grande, a mais famosa tsarina russa.

Sua escalada ao poder, em 1762, levou o embate feminino para o país que a adotou. “Só no ano de 1765 foram documentados mais de 20 duelos femininos na Rússia, isso considerando que os registros eram bastante irregulares e quase inexistentes fora das grandes cidades como São Petersburgo”, analisa Nina Alekceevna Ivanitskaia, especialista em História Russa da Universidade de Moscou. “Desses 20 duelos, a própria Catarina figurava como madrinha em oito.”

O reinado das espadas deixou de ser absoluto com a chegada das armas de fogo. Apesar dos primeiros registros de seu uso datarem de 1346, caíram no uso popular no século 16. E, na França do século 17, um duelo de pistolas entre duas damas entrou para a história. A condessa de Polignac desafiou a marquesa de Nesle. O motivo: o conde de Boulogne, amante de ambas. O duelo foi tão falado na época que atravessou fronteiras e chegou a ser publicado muito depois, em 1825, no popular tablóide inglês The Terrific Register.

A febre dos duelos de espada ou de pistolas caiu em desuso em toda a Europa após 1918, com o fim da Primeira Guerra Mundial e a mortandade que a acompanhou.

Duelista profissional

Vestida de homem, a cantora de ópera Mademoiselle de Maupin fez a sua fama de esgrimista nas ruas do boêmio bairro parisiense Quartier Latin. Nascida em 1673, na região de Armagnac, ela ficou conhecida por dois dons: a habilidade com a espada e a voz de diva.

Com a mesma desenvoltura com que se apresentava na ópera de Paris, Maupin desafiava seus desafetos. A moça de olhos azuis e cabelos negros cacheados gostava de se vestir de homem e virou uma espécie de duelista profissional do famoso bairro.

A duelista morreu com 32 anos, pouco tempo depois de ter decidido aposentar-se da ópera. Suas aventuras inspiraram o escritor Theophile Gautier em seu famoso romance ‘Mademoiselle de Maupin’, escrito em 1834.

O código das espadas

Participar de um duelo não exigia só habilidade. Era preciso conhecer as regras: a parte ofendida devia desafiar a ofensora, esbofeteando o adversário com uma luva. O segundo passo era definir um padrinho (ou madrinha, no caso das mulheres) para cada duelista.

Os padrinhos coordenavam a parte operacional do evento. Ou seja: determinar o local do duelo, que tradicionalmente começava ao pôr-do-sol e devia ser o mais isolado possível, verificar as armas e não raro até duelar entre si se a coisa esquentasse.

Dependendo da ofensa, os duelos terminavam quando fosse derramada a primeira gota de sangue, quando um dos oponentes ficasse ferido e sem condições físicas de continuar a lutar ou, claro, quando alguém morresse. No caso de duelo de pistolas, os padrinhos definiam quantos tiros poderiam ser disparados e a quantos passos de distância.

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